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A mostrar mensagens de junho, 2019

A sobreposição das cordas

Foto: José Lorvão O olhar surpreende a chuva para lá do portal húmido da vidraça Enquanto o estômago é enganado no engodo vertiginoso De uma simples carcaça Os dias repetem os ecos os risos os choros os gritos os abraços e os sorrisos Mas a memória elimina conteúdos de tóxicos recheios Em sobreposição das cordas que serviram para enforcamento E que no agora se transformam em oportunidades de recreio Caminho dentro de roupagens ensopadas e escalo palcos De horizontes em metamorfose inebriantes inalcançáveis sedutores Os sentidos fundem-se com explosões e colapsos Embaraços e desembaraços piruetas e saltos à vara E o corpo de que sou feita prega-me partidas rindo da incredulidade Como se por encantamento ou feitiço me considerasse ave rara Neste atalho por onde deslizo sopro apenas como vento sem norte Uma gota de água derramada no abismo do oceano onde me esvaio e mergulho O resto excedente de uma planície que serve de alimento às bestas A

O roncar da cidade

  Foto: José Lorvão Nas ruas da cidade bordam-se sinaléticas de socorro Pois que vampiros proliferam por entre atmosferas de secura Acenando ao navegador do tempo criado em laboratório Instalando-se nos pedestais aproveitando o esburacar do muro Esbracejando o viajante no deslizar do guarda-chuva negro em túnel inglório E a Amazónia em agonia! As nuvens de algodão doce sobrevoam a cidade corrompida E o sol abraça as avenidas poluídas de Lisboa envelhecida Sustendo o abandono da arquitetura das emoções pelas esquinas sem alma de casas desabitadas Os turistas apressados deixam rastos de sonhos e ilusões Enquanto os negócios se inventam nos chifres da sobrevivência de um país desmantelado Pelo roubo descarado amnésia endémica e o corte profundo do machado E a Amazónia em agonia! E as nuvens de algodão doce pairando sobre a cidade poliglota E as pedreiras a céu aberto anunciando a catástrofe nos poços opacos da ganância E a derrapagem no asfa

Assombramento

  Foto: José Lorvão Escavo sulcos na própria pele por entre rasgos que se dão à luz das criaturas virais Quando em ansiedade mutilo as unhas e olho embasbacada para as palmas das mãos Tentando encontrar no seu traçado a linguagem dos tesouros escondidos Mapas de ligação a tornados e veredas que apontam para campos de lírios ancestrais Mas o lodo entra em efusão e borbulha na caverna austera Lugar dissolvido nas visões dos répteis guardadores de rebanhos cósmicos Suspensos em cordas de tensões elásticas Enrolando-se em piruetas gigantes que sopram em gozo sublime Expandindo e encolhendo bolas de sabão criadoras de mundos pontes em ligação Enlaçando as moléculas e as viroses em constantes adaptações No revelar espinhoso das manobras das contradições Entroncamentos que me guiam os passos por entre terrenos minados Onde os parasitas esposam as posturas por inteiro E descubro no recanto a ponte de pedra por onde a menina saltita a caminho da escola

As mulheres da minha vida

Foto: José Lorvão As mulheres da minha vida vestiram-se de negro Procuraram conforto nos campos onde as oliveiras e os sobreiros brotavam Como se traçassem um acordo de luz sobre as planícies ibéricas Onde os caprinos saltitavam por entre pedras canchos e ribeiros Sustentando os sonhos mantendo-os iluminados na sua mente e inteiros O negro acalenta a morte dos filhos Em tragédias encenadas nos caprichos dos deuses Onde os soterramentos e envenenamentos espreitam sádicos As crias jovens afoitas à tempestade e aos truques ratoeiras dos mágicos O cajado em punho pela domadora de grunhidos Equilibrista dançarina entre desertos barrancos Amante das flores selvagens dos trigais concubinos E das viçosas pastagens que escondiam misteriosos entroncamentos As mulheres da minha vida silenciaram a violação o corte a cisão A invasão das entranhas e defrontaram um mundo sem lei nem sustentação Abafaram a magra comida a pobre refeição Calaram a voz mas n

Vagabundear

  Foto: José Lorvão Os encasacados pedestres apalpam o piso da passeata soalheira Aguardando a cópula do sol sobre o horizonte Enquanto os fetos humanos pressentem para lá da cortina vermelha O conflito a violência o amor vendido a bandalheira Transita por entre o frio da tarde de inverno a cinematografia dos abraços As lágrimas correndo inundando a maquilhagem das faces Que amachucadas experimentaram dolorosos desenlaces Pantomineiros repuxam para a tela os gestos envaidecidos Pela pintura exagerada do arlequim transfigurado Na surpresa bailarina embasbacada pelos patéticos sorrisos E na inversão da imagem saltitam os reflexos provocadores Perante a personagem desprezada solitária e mal-amada contempladora do céu Denunciando posses transitórias na profundidade dos espelhos percursores Ante a nudez calorosa do equilibrista O ciclista pedala na corrente curvilínea da explorada e perversa pista E por entre o ritmo do vem e vai Eis que num g

Covardia

O medo carcomido bloqueou a língua das criaturas veneradoras De ícones e teatralidades existenciais Enquanto os bichos da madeira abrem currais Para outros invertebrados que prostituem manjedouras O medo contaminou os cérebros dos meigos Dos introvertidos dos dedicados dos extrovertidos dos leigos Lança a sua garra afiada traidora de mãos e bocas Rodopia contente e inebriante entre muros sonoros Finge o mono desgraçado que não existe E esconde-se por entre as dobras dos corpos No meio dos sulcos das roupas coladas à intimidade nervosa dos suores Debaixo dos sapatos e dos chinelos de andar por casa Fazendo sentir aos pares de olhos que proliferam sobre as cadeiras instáveis Como passarinhos remelosos asfixiando na gaiola Onde por maleita e obstrução à inteligência caiu de paralisia a asa O medo riu-se das beldades maltratadas pelo mundo Entrançado pelas patologias desencontradas Sobre a mesa redonda do livre-arbítrio Onde escorre a ambiguidade

Escondida nas dobras

  Foto: José Lorvão Esvoaço e num deslize capto o apaziguamento das libélulas Fadas deste e doutro mundo Manobram-me os pensamentos e fazem acontecer Cintilações de amenidade em foles que sopram a brisa da serenidade Pois quando julgo que o meu corpo caiu na fossa Eis que energias entre dobragens me sustêm Me provocam a flutuação sobre brisas E fluem espaçadas e coloridas Mesmo nas horas mais confusas e indecisas A concertina afaga os sons das criaturas aladas Que dançam sobre os rios e os lagos E as minhas lágrimas de desespero unem-se à água corrente Procurando buracos de acesso a novas margens Outros espaços em expansão e delirantes paisagens A tropelia aguarda porém para aplaudir quando cair por terra Quer apanhar-me desprevenida quando a convivência Se tornar enfadonha e austera para me cortar as pernas Definhar-me os braços espetar-me as lanças afiadas Rir-se na minha cara perante solas de sapatos desgastadas A harmónica d

O colapsar dos esqueletos

  Foto: José Lorvão O calor de inverno expõe a contradição dos tempos A paranoia subtil dos templos O ritual ansioso pela eternidade sem nexo dos corpos Os ligamentos corroeram as células sem comando maior Mirraram pela invasão da aridez planeada no balançar dos trapézios Que teimam em criar arquiteturas de corais suspensas Nas torres sem alicerces de um cosmos fictício Feito de correntes serpenteantes na escuridão dos invisuais Que palpam os nutrientes de subsistência Perante o gozo estonteante dos criadores da existência O calor de inverno traz consigo o gás venenoso Provocando o automatismo dos automobilistas da avidez Fazendo pacto misterioso com o acelerador de partículas Os pés transformam-se em bolas de sabão E flutuam na maré salgada dos oceanos Esperam a muda da pele esperançados na eternidade da beleza celeste Os braços metamorfosearam-se em asas de condor Controlando das alturas a passagem das criaturas de escravos a senhor

O que trago e o que levo

Foto: José Lorvão O que trago da magnitude da invisibilidade É a estranheza com que me enfeito O espanto inevitável com que me cubro como manto A dúvida açambarcadora com que me deito E um sentir interior de agrura do desvendar das fossas abissais Como uma lagarta que dá o salto da penumbra do líquido morno Para o ar frio e cortante da vastidão Sem bens sem roupagens Apenas sofrendo o empurrão para um ninho uma guarida De penas raquíticas e visão distorcida invadida por cataratas e poluída O que carrego é o peso infernal da revolta O grito abafado ansiando a devolução em eco De um grunhido de dor em rédea solta É a vergonha de pertencer a uma sociedade de servos acanhados Sem autonomia sem crítica sem ética Vivendo para suicídios frenéticos e conformados Carrego a ira de impotência entre amarras Assistindo à morte de um planeta em agonia Porque os camaleões se abastecem de luxos supérfluos E roubam o que a todos pertence Enquanto

A sobreposição das cordas

  Foto: José Lorvão O olhar surpreende a chuva para lá do portal húmido da vidraça Enquanto o estômago é enganado no engodo vertiginoso De uma simples carcaça Os dias repetem os ecos os risos os choros os gritos os abraços e os sorrisos Mas a memória elimina conteúdos de tóxicos recheios Em sobreposição das cordas que serviram para enforcamento E que no agora se transformam em oportunidades de recreio Caminho dentro de roupagens ensopadas e escalo palcos De horizontes em metamorfose inebriantes inalcançáveis sedutores Os sentidos fundem-se com explosões e colapsos Embaraços e desembaraços piruetas e saltos à vara E o corpo de que sou feita prega-me partidas rindo da incredulidade Como se por encantamento ou feitiço me considerasse ave rara Neste atalho por onde deslizo sopro apenas como vento sem norte Uma gota de água derramada no abismo do oceano onde me esvaio e mergulho O resto excedente de uma planície que serve de alimento às bestas