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As mulheres da minha vida



Foto: José Lorvão


As mulheres da minha vida vestiram-se de negro
Procuraram conforto nos campos onde as oliveiras e os sobreiros brotavam
Como se traçassem um acordo de luz sobre as planícies ibéricas
Onde os caprinos saltitavam por entre pedras canchos e ribeiros Sustentando os sonhos mantendo-os iluminados na sua mente e inteiros
O negro acalenta a morte dos filhos
Em tragédias encenadas nos caprichos dos deuses
Onde os soterramentos e envenenamentos espreitam sádicos
As crias jovens afoitas à tempestade e aos truques ratoeiras dos mágicos
O cajado em punho pela domadora de grunhidos
Equilibrista dançarina entre desertos barrancos
Amante das flores selvagens dos trigais concubinos
E das viçosas pastagens que escondiam misteriosos entroncamentos

As mulheres da minha vida silenciaram a violação o corte a cisão
A invasão das entranhas e defrontaram um mundo sem lei nem sustentação
Abafaram a magra comida a pobre refeição
Calaram a voz mas não alma
Porque a sinto em mim mesma até na noite mais calma
Cerraram os dentes perante a traição
Mas determinadas acenderam as lareiras mesmo sangrando do coração

As mulheres da minha vida amaram sem peias morreram solteiras
Encenaram um palco de risos e roseiras
E levaram consigo a paixão pela vida a admiração da estrela mais longínqua
E dançaram em delírios de entrega à vida e alegria
Contra palcos de sanfonas em sapateados de chinelos velhos estridentes
Perante a   frieza cortante dos deuses indiferentes

As mulheres da minha vida ergueram pás deram serventia a pedreiros
Construíram muros e telhados
Derrubaram muralhas de pedra pavimentaram o chão mesmo em tempos malfadados

Acalento em mim todas as mulheres da minha vida
Quando abraço cada árvore do bosque e encosto o meu corpo
Aos menires de outrora nos lugares sagrados da terra
Quando nado nas águas calmas dos lagos e dos rios
Quando enalteço e amo os animais na cavalgada da existência
Quando a mente se acerca do corruptível com que nos embrulhamos
E os elementos naturais se transformam em bens essenciais
Ou em mantos negros com que nos transformamos em seres irreais

Guardo em mim a revolta que não pode nem deve silenciar o estuprar
Os atentados à vida feminina e as traições
A luta pela subsistência a infâmia dos políticos roubando o que é de todos
Ignorando e maltratando as famílias por ganâncias e corrupções

O meu corpo e espírito dançam cada vez que a vontade me puxa
Para a ondulação das águas dos abismos das fráguas
Até que o corpo capitule e se ausente deste mundo e morrer
Para noutros cenários laivos de mim possam renascer
Sinto colada a mim a liberdade de amar
Por entre o entusiasmo da construção de beirais onde as andorinhas edificam os ninhos
Apanho o voo delicado e estonteante dos flamingos para outras paragens outras geografias novas aragens
O meu coração plana até aos confins da galáxia para lá da lua amante
Do sistema solar salto abandonando os lamentos saudosistas e a intriga delirante

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